23.10.06

Mais detalhes do lugar - Praça da Liberdade Zumbi dos Palmares












































Novo Artigo - Jornal da Manhã - Publicado em 22/10/2006

A estação ferroviária original de Uberaba, nos anos 1920.



A ESCRITA DA LUZ E A ESCRITA DA HISTÓRIA


Hoje, para todo lado que olha, o historiador ouve vozes. Isso porque, com os avanços teóricos e metodológicos trazidos pelas recentes discussões no campo da escrita da história, ele se vê diante de novas fontes historiográficas, passando a ter um novo repertório de objetos a serem analisados, uma verdadeira “revolução documental”, que muito contribui para um alargamento do conceito de documento.

A escrita da luz – a nossa fotografia – é uma dessas vozes que mais clama por um ouvido que possa escutá-la. Mais: possa também, além de escutá-la, compreendê-la. Fonte de memória bruta, a fotografia, desde que foi inventada em meados do século XIX, tornou o mundo familiar. O homem passou a ter um conhecimento mais preciso e amplo de outras realidades que lhe eram, até aquele momento, transmitidas unicamente pela tradição escrita, verbal ou pictórica.

Entrementes, como a fotografia é um fragmento de um mundo mais amplo, o conhecimento trazido por ela necessita de uma contextualização, posto que é um conhecimento obtido através do detalhe. Dito de outra forma: para se escutarem as vozes que ecoam das fotografias, antes de tudo, é preciso compreender a tensão permanente existente entre aquilo que se fotografou e o contexto que lhe deu origem.

Isso porque toda fotografia representa em seu conteúdo uma interrupção do tempo, e, portanto, da vida. O fragmento selecionado do real, a partir do instante em que foi registrado, permanecerá para todo o sempre interrompido e isolado. Diante disso, pode-se afirmar que a fotografia, tomada nesses termos, é uma re-apresentação da realidade. É dessa forma que se torna um documento histórico, uma fonte histórica.

Nessa perspectiva, o fotógrafo é um elemento muito importante nessa trama, uma vez que é ele quem seleciona um determinado detalhe do real a ser memorizado. Pela sua escolha, sempre intencional, podemos inferir elementos acerca do funcionamento da mentalidade do objeto fotografado. Isso nos permite dizer que o fotógrafo é, para o outro, um fabricador de versões da realidade, uma vez que, ao escolher uma cena a ser registrada, exerce um certo controle da memória.

Para não se tomar a versão do fotógrafo como sendo a única possível, é preciso superar as intenções daquele que a produziu. O valor e o alcance da fotografia enquanto documento histórico está na razão direta de quem consegue, em função de sua bagagem cultural, sensibilidade, experiência humana e profissional, formular-lhes as perguntas corretas e adequadas.

Outro aspecto a ser lembrado quando se toma a fotografia com a função de compreender o passado é perceber que a cena registrada na imagem não se repetirá jamais. Dessa forma, o historiador tem diante de si a perpetuação de um momento. Se quisermos, a perpetuação da memória: memória individual, memória coletiva, memória dos costumes, da natureza, etc.


Sendo a fotografia um resíduo daquilo que se foi, contemplá-la e compreendê-la é acessar um tempo histórico não mais disponível, entretanto, presente. Presente, sobretudo, na comoção de que somos tomados ao giramos a chave do passado e, dessa forma, trazermos de volta para o presente um turbilhão de emoções esquecidas, mas que graças ao contato com o fotograma não está condenado ao esquecimento.

11.10.06

Novos Historiadores - Gustavo Vitor Pena

Conheci Gustavo Vitor Pena quando estávamos fazendo matrícula no curso de História da UNIUBE, em fins de 2000. Lá estava ele, com seu jeito tímido, observador. Comentamos algo que hoje eu não me lembro mais. Em sala de aula, Gustavo sempre foi de falar depois de todos nós. Eu falava muito, depois falava o Paulo (que também falava muito), depois eu de novo (sempre falei demais). Vez ou outra os colegas falavam. Todos com observações pertinentes ao que se estava discutindo. Mas quando Gustavo falava, tudo, absolutamente tudo, era tido. Se éramos parciais em nossas análises, Gustavo era total. No primeiro dia de curso, ele disse que iria conquistar o mundo (o que lhe rebdeu o apelido de Ming, imperador do planeta que leva seu nome e antagonista do Flash Gordon). Não duvido. Erudição, rigor de análise, texto inconfundível e um ótimo camarada: essas são algumas de suas (muitas) virtudes. Gustavo, atualmente, divide-se entre o Mestrado na UFU e a profissão de professor de história. Abaixo, suas respostas.

1) Fale da sua trajetória intelectual (seria uma pequena biografia).

Nascido e criado nesta cidade fiz o primário na Escola Estadual Uberaba (hoje encampada pelo município), uma parte do ensino fundamental na Escola Estadual Lauro Fontoura e o restante desde, assim como o ensino médio, no Colégio Tiradentes da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais. Depois, antes de entrar no ensino superior, fiz alguns cursos técnicos, como Patologia Clínica e Comunicação de Rádio e TV. Nesse meio tempo, ganhei um concurso de contos promovido pela Academia de Letras do Triângulo Mineiro, além de menções honrosas em outros, inclusive com a publicação de um trabalho numa antologia pela editora Litteris. Em 2001 entrei para a Universidade de Uberaba, onde, 4 anos depois, me licenciei plenamente em História. Um ano depois, entrei como aluno regular no mestrado – linha história e cultura – da Universidade Federal de Uberlândia, onde estou até hoje, dividindo meu tempo com a rede estadual de ensino, na qual sou professor.

2) Descreva o seu projeto de pesquisa.

Omnem crede diem tibi diluxisse supremum. Assim já nos admoestava o poeta latino Horácio: “faz de conta que cada dia é o último que brilha para ti”. Essa sentença nos remete, inexoravelmente, a idéia de cotidiano, que por sua vez, é uma das vertentes de pesquisa abrigadas sob a égide da Escola dos Annales. Amparado pelas novas perspectivas de abordagens históricas introduzidas pela história das mentalidades, eu abordo em meu trabalho a vida cotidiana em Uberaba na década de trinta do século XX – mais especificamente, sobre a influência que a morte exercia na vida diária destes uberabenses. Para esta pesquisa, levo em conta o período compreendido entre 1934 a 1939, uma vez que no Arquivo Público Municipal de Uberaba, são esses os exemplares do jornal Gazeta de Uberaba que se encontram em melhores condições de manuseio – periódico esse que se constituirá em minha principal fonte histórica.

Procuro avaliar como o jornal supracitado tratava o assunto, e qual a ressonância que a forma usada pelo periódico tinha na população. Posso adiantar que constatei um certo “elitismo” nos obituários pesquisados, pois as menções sobre o falecimento de pessoas comuns neste periódico foram deveras raras. Partindo desta observação, procurei saber o porquê desta postura, ao mesmo tempo em que tentei recuperar, trazer do limbo do esquecimento, esses sujeitos comuns que não figuravam nos obituários, mas cujas memórias são importantíssimas demais para não fazerem parte deste grande emaranhado de fios que é a memória de uma cidade.

Um obituário era, antes de ser um informativo, algo que demonstrava status. Mais do que comunicar a morte e o local do sepultamento, era uma oportunidade para as famílias se exibirem à sociedade, uma vez que todas as supostas virtudes do defunto (minuciosamente registradas), ocupavam grande parte da nota de falecimento.A História Oral também me é de grande valia, uma vez que por meio dela poderei recuperar impressões que não me seriam possíveis de serem obtidas somente com o estudo das fontes escritas, ao mesmo tempo em que ela me ajudará a compreender como o imaginário local tratava essa questão.

3) Como você tem visto o crescente interesse pela história?

Tenho visto com muito entusiasmo, pois todo esse interesse, além de já ser deveras saudável por si só, ainda pode ser canalizado para abranger outros interesses do poder público e da sociedade em geral, como a preservação do patrimônio da cidade, a conscientização dos cidadãos enquanto seres pertencentes a uma comunidade, da necessidade da celebração de nossas figuras históricas... Como disciplina de referência, a História pode suscitar discussões que refletem diretamente em outros campos, atingindo a todas as pessoas, gerando uma onda de interesse que, se bem fomentada pelos historiadores, será capaz de transformar socialmente o município em um pólo de pessoas conscientes e de cidadãos exemplares.

4) Podemos falar de uma nova geração de historiadores aqui, em Uberaba, tendo em vista nossos respectivos trabalhos? Você se sente pertencente a ela?

O curso de História da Uniube permaneceu por algum tempo fechado, o que certamente foi um dos fatores que contribuíram para essa aparente “apatia” de trabalhos históricos em Uberaba. Digo aparente porque, mesmo durante esse período, algumas pesquisas acabaram acontecendo, embora não sendo conduzidas necessariamente por historiadores, mas por outros profissionais, como advogados, médicos e jornalistas. Com o ressurgimento do curso, um novo impulso foi dado, e muitas jovens cabeças estão sendo estimuladas em apresentar projetos neste sentido. Acredito que essa “lufada” de vento fresco não será fugaz, tamanha a qualidade dos trabalhos que conheço dos meus colegas que, assim como eu, resolveram prosseguir na vida acadêmica depois do diploma. Apesar de não possuir o mesmo talento de meus colegas, me sinto honrado em ser contemporâneo dessa geração, que certamente elevará o nome de Uberaba como berço de pródigos acadêmicos.

5) Se sim, onde você vê que essa geração se separa dos demais historiadores (seria na metodologia utilizada, nos temas dos nossos trabalhos, nas fontes, etc)?

Poderia dizer que o principal mérito desta nova geração está em seus objetos de estudo, na opção de trabalhar com a história local. Uberaba é uma cidade carente de dados sobre seu próprio passado, e se beneficiará muito dos avanços desta geração, que está literalmente desbravando fronteiras, chamando a atenção de todos para que recuperemos o que resta de nosso âmago, antes que seja tarde demais. Se essa geração puder conscientizar a todos da importância de se conservar nosso patrimônio, ela já terá cumprido sua missão.

6) E por fim: na sua opinião, quem tem medo da história local?

Aqueles que acham, em nome da ambição desenfreada e da falta de compromisso com o futuro, mais interessante derrubar um casarão e construir um estacionamento do que preservar e conceder o legado do passado às gerações futuras.

Novo artigo Jornal da Manhã - Publicado em 08/10/2006


A SIMPLICIDADE ERUDITA DE ROGER CHARTIER

No último dia 28 de setembro, estive, juntamente com outros colegas historiadores, na Universidade Federal de Uberlândia a fim de ouvir uma palestra, intitulada A Nova História Cultural, proferida por um dos mais importantes historiadores da atualidade: o francês Roger Chartier. Entre outras ocupações, o professor Chartier é diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, onde leciona disciplinas relacionadas com a história das práticas culturais e história da leitura. O seu seminal artigo O Mundo como Representação – além de outras obras – abriram novas possibilidades no campo historiográfico, especialmente aqueles ligados à história cultural.

Apenas para situar, de forma muito breve, a história cultural é uma maneira de se escrever a história que leva em conta uma especial afeição pelo informal e apresenta caminhos alternativos para a investigação histórica, indo onde as abordagens tradicionais não foram. Nessa forma de se escrever a história, são deixadas de lado interpretações generalistas e globalizantes. Para tanto, nos aconselha Roger Chartier, o historiador da cultura deve entender as manifestações culturais como prática, e sugere para seu entendimento os conceitos de Representação e Apropriação.

A Representação seria analisar as ausências por intermédio de práticas simbólicas, uma vez que o ausente em-si não pode mais ser visitado. Segundo Sandra Pesavento, historiadora que comenta a obra de Chartier, “representar é estar no lugar de; é a presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência”. Já a Apropriação seria a tentativa de construir uma história social, remetida para suas determinações fundamentais, que são o social, o institucional e, sobretudo, o cultural. A história local, enquanto corrente historiográfica, só tem sido possível por conta dos avanços da história cultural.

Mas vamos voltar ao nosso encontro com Roger Chartier. Ao chegarmos ao anfiteatro, fomos surpreendidos com o fato de que a palestra seria proferida em português, não sendo necessário haver tradução simultânea. Interessante observar que, na maioria das vezes, os palestrantes que por aqui nos visitam, não se preocupam, nem um pouco, com isso.

Aos nos acomodarmos nas poltronas, outra surpresa: de repente um senhor na casa dos 60 anos (confesso que o julgava bem mais velho), extremamente sorridente, acenando para os presentes, senta-se na mesa central e passa a autografar, pacientemente, seus livros e deixar que as pessoas lhe tirassem fotografias. Além de conversar amigavelmente com todos a sua volta.
Sua palestra, onde procurou traçar um histórico das principais correntes da história cultural, primou pela erudição e pela precisão ao usar conceitos até certo ponto bastante complexos para serem abordados em falas breves como são as palestras. Entrementes, a simplicidade de sua postura foi traço marcante durante toda sua exposição. Ao final, respondeu a todas as perguntas que lhe foram encaminhadas.

Entretanto, o mundo acadêmico, freqüentado por ilustres professores, mestre e doutores, não é dado a simplicidades. Ao contrário: a vaidade e a empáfia são suas principais características. No encontro com Roger Chartier, aprendemos bastante sobre metodologia da história. Mas também tivemos a oportunidade de aprender algo que muito tem feito falta aos nossos intelectuais e aos ambientes por eles freqüentados: que ser simples e simpático não afeta o rigor das nossas análises nem nos torna menos competentes.