26.11.06

Novo Artigo - Jornal da Manhã - Publicado em 26/11/2006

BIOGRAFIAS

As biografias, ou seja, relatos sobre a história de vida das pessoas, estão na moda. Podemos vê-las nos cinemas, nas mini-séries, nos romances. As livrarias criaram uma estante especialmente dedicada a elas. Também nas narrativas historiográficas, as biografias estão lá. Aliás, acho que sempre estiveram. Há muito os historiadores preocupam-se em descrever os feitos e as memoráveis de homens que, devido as suas atitudes, chamaram a atenção.

Entretanto, existem algumas formas usadas na confecção de uma biografia. Podemos, de maneira rápida, agrupá-las em duas categorias: as biografias tradicionais e as renovadas.
Nas biografias tradicionais, encontramos uma descrição linear dos fatos vividos pelo indivíduo ao longo do seu tempo de vida. A biografia tradicional é amplamente identificada com um tipo de história que tratava apenas dos grandes homens e de seus feitos, perpetuando uma versão dos fatos históricos a partir dos vencedores.

Nas biografias renovadas, por sua vez, encontramos a necessidade de problematizar toda a experiência do indivíduo, sendo possível, por meio dessas problematizações, inferir experiências que ampliem as conjunturas particulares, alcançando os nexos e contornos mais generalizantes. É como se por intermédio das experiências particulares dos sujeitos se abrisse inúmeras possibilidades de análises que permitissem compreender situações para além das suas próprias. Os elementos de formação de vivências individuais são gestados nas suas experiências sociais e nas experiências sociais dos grupos aos quais pertenceu.

Dessa forma, o historiador deve adotar os procedimentos metodológicos da nova biografia que, utilizando-se do individual, busca-se o diálogo permanente com sua realidade contextual. Biografar o indivíduo e o seu entorno é demarcar e dialogar com os problemas de seu tempo. Phillippe Levillain, importante historiador francês diz: “A biografia [renovada] reassume uma função a meio caminho entre o particular e o coletivo, exercício apropriado para identificar uma figura num meio, examinar o sentido adquirido por uma educação distribuída a outros segundo os mesmos modelos, analisar as relações entre desígnio pessoal e forças convergentes ou concorrentes, fazer o balanço entre o herdado e o adquirido em todos os domínios”.

O que se busca com a nova biografia histórica é captar o senso de realidade dos problemas sociais através da concretude das experiências de vida. Assim, construímos também o contexto no qual age o indivíduo. Aquilo que Pierre Bourdieu chama de “superfície social”: uma pluralidade de itinerários possíveis, de atrações múltiplas, não-lineares e mutantes a todo o momento, o que nos leva, enquanto historiadores, ao hercúleo esforço para não construirmos modelos que tratam de uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estável.

Evidentemente, uma construção biográfica é uma tentativa de dar sentido, tornar inteligível, descortinar a lógica que rege essa ou aquela escolha dos sujeitos biografados. No entanto, seria uma ilusão, para usarmos um termo do próprio Bourdieu, engessarmos esse sujeito em escolhas homogêneas, não-contraditórias e totalmente conscientes, fazendo da sua história de vida um “artefato socialmente irrepreensível”.

Uma análise crítica, segundo Bourdieu, dos processos sociais em intersecção com as trajetórias de vida dos indivíduos ou grupos de indivíduos “conduz à construção da noção de trajetória como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações”.

Portanto, devemo-nos desviar de toda construção biográfica de cunho narcísico, que nada mais faz do que constatar a posteriori aquilo que o indivíduo já é a priori, vendo no desenrolar de suas vivências aquilo que já estava nele desde sempre, só conseguindo ver, em ato, aquilo que já estava presente em potência, em que todos os movimentos desse indivíduo deixam de existir. Dessa forma, torna-se o sujeito aquilo para o qual ele sempre tendeu, em que o discurso biográfico construído nada mais faz do que legitimar as ações do biografado.

14.11.06

Novo Artigo Jornal da Manhã - Publicado em 12/11/2006

A HISTÓRIA LOCAL E SUAS POSSIBILIDADES DE INVESTIGAÇÃO HISTORIOGRÁFICA

Acreditou-se, durante um bom tempo, que escrever a história era descrever os eventos vividos pelo homem sempre apoiado em interpretações generalizantes, nas quais somente as “grandes questões” tinham espaço.

A partir do momento que as análises globalizantes não deram conta de explicar os problemas do homem anônimo, paradigmas historiográficos começaram a ser questionados: novas fontes, em especial, as orais, passaram a ser incorporadas ao rol de investigação do historiador; novas perguntas foram feitas a essas fontes; uma atitude irremediável de associação com outras ciências humanas, sobretudo a antropologia e a sociologia, visando não a uma explicação cabal, e sim a uma maior compreensão do nosso objeto de investigação. E foi, a partir daí, que os contornos mais sutis passaram a também ser considerados oficio do historiador.

Mas ter seu ofício reconhecido não resolve os problema do historiador do local. Ao contrário, aqui eles começam. É preciso, agora, que o historiador sustente suas afirmações, dê consistência a suas análises. Em outras palavras, é preciso que o historiador pergunte por onde anda a legitimidade do seu ofício; é preciso que se questionem as possibilidades de uma investigação historiográfica em que o local passa a ser o cenário da história.

E, para responder a essas indagações, o historiador do local deve ter clareza das suas prerrogativas metodológicas. Afirmando com o professor Agnaldo de Souza Barbosa: “o principal desafio metodológico para a história local é o problema da relação tempo-história que precisa, pelos historiadores, ser revista”. A história generalizante trabalha com a noção de tempo uniforme, comum a todos os espaços, uma espécie de superestrutura da história global. À história local importa a apreensão do tempo dos lugares, o tempo realmente vivido por cada localidade, composto por um amálgama de experiências distintas dos pólos hegemônicos num mesmo momento histórico.

Mas é preciso também ter em mente que tentar ver nas partes somente uma micro-reprodução do todo é não entender, de fato, o que acontece tanto na parte como no todo. É homogeneizar relações não homogêneas. Por isso podemos dizer que o grande avanço da história local é a busca das singularidades, diversidade na história e, sobretudo, o respeito aos detalhes.

Uma outra discussão muito salutar ao historiador do local é a própria definição do que é local. Muitas críticas já nos foram feitas, sobretudo aos historiadores que tomam como medida do espaço local a geografia política, quando definimos o espaço local apenas como sendo a cidade, o município, o estado da federação, etc.

No lugar dessa definição meramente geográfica, preferimos uma delimitação dos recortes espaciais que levem em conta a historicidade dos espaços. Assim, preferimos a definição do que é local dependente das relações que determinada região mantém com as outras em diferentes momentos históricos.

Uma última reflexão: o objetivo central, ao menos no nosso entender, da história local é fornecer elementos que não podemos deixar de levar em conta quando tentamos compreender as diversas variáveis que constituem o sistema global de interpretações históricas, dando-nos elementos para que tenhamos condições de criticar as grandes generalizações de nossa história.
A consideração acima se faz necessária na medida que alguns dos historiadores que se ocupam da história local ainda o fazem tendo em mente a idéia equivocada de construção de uma história nacional a partir do somatório das diversas histórias locais.

Diante do que foi exposto, fica claro que as possibilidades de uma investigação historiográfica partindo da prática de uma história local são perfeitamente possíveis. No entanto, toda vigilância é necessária para que não façamos dessa nova escrita da história uma babel onde tudo caiba, correndo o risco de perder sua finalidade.